POR INTERINO
Religião, medo de fraudes e receio com relação ao laudo. Estes são os principais motivos atestados pelas famílias para não autorizar a doação de órgãos dos parentes após a constatação da morte encefálica. No Rio Grande do Norte, 62% das famílias recusam a doação. O número está acima da média para a região Nordeste, onde a coleta não é autorizada pelos parentes em 50% dos casos.
Religião, medo de fraudes e receio com relação ao laudo. Estes são os principais motivos atestados pelas famílias para não autorizar a doação de órgãos dos parentes após a constatação da morte encefálica. No Rio Grande do Norte, 62% das famílias recusam a doação. O número está acima da média para a região Nordeste, onde a coleta não é autorizada pelos parentes em 50% dos casos.
Das 152 notificações de morte encefélica registradas pela Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO) da Secretaria Estadual de Saúde, no ano passado, a doação só foi efetivada em 36 pacientes. Como nos casos de morte cerebral o organismo continua exercendo algumas funções de forma mecânica, muitos familiares têm receio de que o quadro possa ser reversível. Entretanto, o diagnóstico é definitivo e seguro, dizem os especialistas, não existindo a possibilidade de que o paciente volte a ser reanimado.
A emissão do laudo conta com respaldo de pelo menos dois médicos, o que acompanha o paciente na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e um neurologista ou neurocirurgião. O atestado é confirmado por um exame de imagem, o eletroencefalograma, que mede a atividade cerebral. Caso a morte encefálica seja constatada, o quadro é irreversível e os movimentos cessam dentro de algumas horas.
Com o laudo em mãos, a decisão sobre a doação de órgãos fica a critério da família. Os parentes precisam agir de forma rápida e consciente, pois em no máximo dois dias o funcionamento dos órgãos fica comprometido e a doação não pode mais ser realizada.
Em caso positivo, as informações são cadastrados no sistema nacional que considera a análise de compatilidades e prioridades. Os processos de constatação da morte, encaminhamento do órgão e realização do transplante são feitos por equipes distintas para garantir que o processo siga sem conflitos de interesse ou favorecimento de terceiros.
Primeiro existe o trabalho da UTI do hospital, responsável pelo diagnóstico e pelo primeiro contato com a família. Em seguida tem início o processo de captação realizado pela OPO (Organização de Procura de Órgãos). Ao final desta etapa exite uma equipe de transplantadores, responsáveis pelo processo cirúrgico do receptor. "Existe um sistema entrelaçado de notificação. Todas as doações passam pela central. Não existe como burlar o sistema ou atuar com conflito de interesses", revela a coordenadora da CNCDO, Raissa de Medeiros.
Raissa ressalta ainda a necessidade de desmistificar as questões sobre a doação de órgãos. Pensando nisso o Ministério da Saúde, em parceria com a Fundação Faculdade de Medicina da USP, desenvolveu um projeto itinerante que está em Natal até amanhã. A exposição Gesto Herói foi instalada no Natal Shopping e tem entrada gratuita. A mostra tem como objetivo esclarecer dúvidas que o público possa ter com relação a doação de órgãos, além de exibir depoimentos de pacientes e familiares, conscientizando e sensibilizando a população.
"A doação de órgão é um gesto nobre que não beneficia apenas uma pessoa, vai beneficiar muitas. Existe uma rede interligada para os transplantes, então mesmo que a cirurgia não possa ser feita aqui, o órgão vai ser encominhado para alguém de outra cidade que precisa do transplante", reforça Raissa.
Os receptores dos órgãos passam por longas filas de espera até que o sistema encontre um órgão compatível de acordo com as listas de prioridades. O Estado do Rio Grande do Norte realiza apenas os transplantes de rim, córnea e medula óssea. Este último tem um procedimento diferente, pois a doação é feita em vida. Nos dois primeiros casos, a fila de espera reúne mais de 300 cadastros; são142 pacientes que aguardam por um transplante de córnea, enquanto 160 necessitam de um rim.
O Rio Grande do Norte realiza apenas os transplantes de rim, córnea e medula óssea
A dona de casa Maria Regina James, 64, está há quatro anos na fila de espera por uma doação de rim. Nos últimos dois anos entrou para a lista de prioridades nacionais, mas ainda não existe perspectiva de quando encontrará um doador. O esposo, os três filhos e os três netos não são compatíveis, assim como o possível doador que encontrou há aproximadamente dois meses.
Enquanto aguarda a cirurgia que pode transformar a sua vida de forma definitiva, Regina James faz hemodiálise há cinco anos. São três sessões por semana, cada uma delas com duração de aproximadamente quatro horas. “É uma mudança muito grande. Quando você entra na máquina, nunca sabe como vai sair. Algumas pessoas saem relativamente bem, mas no geral as pessoas costumam se sentir indispostas. Chamamos de ressaca da hemodiálise. No início sentia muito mal estar, agora sinto cada vez mais fraqueza”, relata Regina.
A dona de casa também ressalta as limitações que o tratamento causa em seu cotidiano e a esperança de que o problema seja resolvido de forma definitiva através do transplante. O cansaço e o mal estar causados pela diálise fizeram com que Regina parasse de pintar por exemplo. Suas paisagens bucólicas se espalham entre as paredes da casa em que vive com o esposo Reginaldo James. “Eu pintei esses quadros, mas agora tive que parar por causa do mal estar e da indisposição. Tem coisas que a gente precisa abrir mão”, explica.
Regina conta ainda que as limitações cotidianas se estendem para a sua família. “Eles também ficam privados. Às vezes tem alguma viagem ou algum passeio que a família gostaria de fazer, mas nunca podemos porque preciso fazer a hemodiálise. Se eu não fizer um dia, já começo a sentir os efeitos. Sinto falta de ar. É como se estivesse intoxicada. É uma intoxicação, na verdade, porque sem a função dos rins e sem a hemodiálise, o corpo não filtra as impurezas do que é ingerido”, explica.
A dona de casa enfrenta os problemas renais há 37 anos, quando descobriu que estava com cálculo renal. Já realizou oito cirurgias para extração de cálculos e 21 litotripsias, processo médico cirúrgico que visa reduzir o tamanho dos cáculos por esmagamento ou trituração. Após vários anos de tratamento e algumas complicações, Regina perdeu o rim direito e tem apenas uma pequena porção do rim esquerdo, praticamente sem atividade. “O tratamento de hemodiálise é uma sobrevida, não é uma vida normal. O transplante é a única forma de resolver isso para que eu possa ter uma vida normal. Um dia, se eu puder, quero doar todas os meus órgãos, pele, ossos, coração, tudo. É uma coisa muito importante e pode mudar a vida de uma pessoa”, declara Regina.
Questões burocráticas e falhas administrativas
O Rio Grande do Norte realiza apenas transplantes de rim, córnea e medula óssea. Este último passa por um processo diferente, pois a doação é feita em vida. Ambos são realizados nos Hospital Universitário Onofre Lopes. Os transplantes de rim também podem ser realizados no Hospital do Coração e os de córnea na Prontoclínica de Olhos. Outros órgãos podem ser coletados, mas são encaminhados para outros estados através da central de transplantes.
Além da discrepânsia entre o número de doações e a quantidade de pessoas que precisa de algum transplante, existem questões burocráticas e administrativas que dificultam os procedimentos. No último mês, por exemplo, os transplantes de rim foram suspensos devido a falta do reagente necessário para as cirurgias.
O composto é utilizado para verificar a compatibilidade entre o doador e o receptor. A falha foi causada pro falta de pagamento da Sesap e do Ministério da Saúde e causou a suspensão de oito transplantes. Na ocasião, mesmo com os órgãos disponíveis e em bom estado não foi possível realizar a coleta.
O pagamento foi realizado em regime de urgência e a questão já está normalizada. Entretanto, médicos e pacientes lamentam os transplantes suspensos. “Eu acho que todos nós que aguardamos por um transplante choramos por dentro ao ver que oito cirurgias deixaram de ser feitas”, declara Maria Regina.
De acordo com a nefrologista Kellen Micheline, médica do Hopsitqal Honofre Lopes e responsável pelo setor de transplantes do Hospital do Coração, a principal dificuldade agora é a falta de um medicamente chamado Tacrolima, utilizado para reduzir a imunidade dos receptores e evitar que o organismo rejeite o órgão implantado. A médica explica que a previsão de chegada é de aproximadamente duas semanas e que até a data prevista para que o problema seja solucionado, o setor está em um momento crítico.
Kellen Micheline ressalta também a dificuldade para realização dos exames necessários antes da cirurgia. São aproximadamente 40 testes solicitados ao receptor do órgão e, de acordo com a médica, ainda são inacessíveis para muitos pacientes. “Quem realiza os exames pelo SUS (Sistema Único de Saúde) é o Hospital Universitário Onofre Lopes. Para as pessoas que vivem na capital é um pouco mais fácil, mas muitas vezes os pacientes do interior têm dificuldade de chegar ao hospital por falta de apoio das prefeituras. Reivindicamos que alguns exames mais simples deveriam ser realizados nos municípios para que fique mais acessível”, esclarece.
FONTE: NOVO JORNAL
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