Myint Naing é um das centenas de trabalhadores forçados a trabalhar na indústria da pesca que alimenta mesas de jantar e tigelas de gastos nos Estados Unidos, na Europa e no Japão
Myint Naing, ex-escravo da indústria da pesca no sudeste asiático, abraça irmã após 22 anos. Foto: Divulgação
A última vez que o escravo birmanês fez o mesmo pedido, foi espancado quase até a morte. Mas depois de oito anos à distância e forçado a trabalhar num barco na Indonénsia, Myint Naing quis arriscar tudo para ver sua mãe de novo.
Então ele se jogou no chão e implorou por liberdade. O capitão do barco, porém, jurou matá-lo por tentar saltar do navio, e o acorrentou por três dias sem comida ou água. Myint Naing temeu que fosse desaparecer e que sua mãe não teria ideia de onde procurá-lo.
Myint é um dos mais de 800 atuais e ex-escravos resgatados ou repatriados depois de uma investigação de um ano da agência de notícias Associated Press (AP) sobre os abusos trabalhistas disseminados na indústria de pesca do Sudeste Asiático.
O pujante setor de pesca da Tailândia sozinho depende de cerca de 200 mil imigrantes, muitos deles forçados a entrar nos barcos depois de serem enganados, sequestrados ou vendidos. É um comércio brutal que opera há décadas, com companhias dependendo de escravos para abastecer Estados Unidos, Europa e Japão de peixe – servido nas mesas de jantar e nas tigelas de comida para gatos.
Myint, sua família e seus amigos contaram sua história à AP, que também acompanhou parte de sua jornada, surpreendentemente similar à de outros relatos feitos por muitos dos 330 atuais e ex-escravos de Myanmar, Camboja, Laos e Tailândia entrevistados pessoalmente ou por texto pela agência.
Em 1993, um negociador visitou a vila de Myint no Sul de Myanmar com a promessa de emprego para jovens do sexo masculino na Taliândia. Myint tinha apenas 18 anos, sem nenhuma experiência em viagens, mas sua família estava desesperada por dinheiro. Então sua mãe finalmente acedeu. Quando o agente voltou, pediu para que os novos recrutados pegassem as malas imediatamente.
A mãe de Myint não estava em casa. Eles nunca se despediram.
‘Vocês foram vendidos e ninguém virá os resgatar’
Um mês depois, Myint se viu no mar. Depois de 15 dias, o barco finalmente atracou na remota indonésia de Tual, rodeada por uma das áreas de pesca mais ricas do mundo. O capitão tailandês gritou que todo mundo pertencia, agora, a ele.
“Seus birmaneses, vocês nunca vão voltar para casa. Vocês foram vendidos e ninguém os virá resgatar.”
Myint passavas semanas seguidas no mar aberto, alimentando-se apenas de arroz e restos da pesca que niguém mais queria comer. Com a expansão da indústria pesqueira da Tailândia, a exploração exagerada forçou os navios a avançar cada vez mais por águas estrangeiras. Então os migrantes ficam agora presos por meses, ou mesmo anos, em prisões flutuantes.
Durante os períodos de maior trabalho, os homens trabalhavam 24 horas por dia. Não havia remédios e eles eram forçados a beber água do mar fervida. Qualquer um que descansasse ou ficasse doente apanhava do capitão. Os pescadores dizem que os trabalhadores em alguns barcos foram mortos por diminuir o ritmo de trabalho, enquanto outros simplesmente saltavam ao mar.
Myint recebia apenas US$ 10 por mês, e algumas vezes sequer era pago.
Em 1996, depois de três anos, ele não aguentava mais e pediu pela primeira vez para ir para casa. Como resposta, recebeu como resposta um golpe, desferido com um capacete, que lhe rachou a cabeça.
Fuga e abrigo
Ele correu. Uma família indonésia cuidou de Myint até que ele se curasse, e lhe ofereceu alimentação e abrigo em troca de trabalho em uma fazenda. Por cinco anos, ele viveu uma vida simples. Mas não conseguia esquecer seus parentes em Myanmar, anteriormente conhecido como Birmânia, ou os amigos que ficaram no barco.
Em 2001, ele ouviu que um capitão estava oferecendo levar os pescadores de volta para casa em troca de trabalho. Então, oito anos após chegar à Indonésia, voltou ao mar.
Mas as condições eram tão terríveis como da primeira vez, e também não havia dinheiro. Se alguma coisa estava acontecendo, era uma piora no mercado de escravos. Para atender a uma demanda crescente, os negociadores até mesmo drogavam e sequestravam imigrantes para levá-los à bordo.
Depois de nove meses na água, o capitão de Myint disse à tripulação que estava os abandonando para voltar à Indonésia sozinho. Furiosos e desesperados, o escravo birmanês pediu mais uma vez para ir para casa. Isso, conta, levou-o a ser acorrentado ao barco.
Buscando desesperadamente, ele encontrou um pequeno pedaço de metal para abrir o cadeado. Horas depois, ouviu um clique. Ele mergulhou no mar após a meia noite e nadou até a costa.
Myint se escondeu sozinho na selva de Tual. Ele não poderia ir até a polícia, com medo de ser entregue de volta aos capitães. Ele não tinha nenhum número de telefone para ligar para casa e tinha medo de procurar a embaixada de Myanmar porque isso o poderia expor como imigrante ilegal.
Ele havia perdido cerca de uma década como escravo e tinha sofrido o que parecia um derrame que deixou o seu braço direito parcialmente paralisado. Ele começou a acreditar que o capitão estava certo: não há escapatória.
Nesse momento, ele já havia esquecido como era a sua mãe e sabia que suas irmãs já teriam todas crescido.
Sobrevivendo de vegetais
Em 2011, a solidão ficou grande demais. Myint se mudou para a ilha de Dobo, onde ouviu que havia uma pequena comunidade de ex-escravos birmânios. Ele continuou a viver discretamente, sobrevivendo de vegetais que cultivava.
Até que um dia, em abril, um amigo lhe contou que uma reportagem da AP sobre escravidão havia levado o governo da Indonésia a começar a resgatar atuais e ex-escravos. Oficiais foram a Dovo e levaram Myint de volta para Tual, a ilha na qual ele fora um escravo, para se juntar a centenas de outros homens livres.
‘Só precisamos de família!’
Depois de 22 anos na Indonésia, Myint finalmente estava voltando para casa. Mas, pensava, o que iria encontrar?
O voo para a maior cidade de Myanmar, Yangon, era assustador no princípio. Myint, agora com 40 anos, era um estranho em seu próprio país.
No caminho para sua vila natal, ele viu uma mulher birmanesa gorda. Eles abraçaram-se efusivamente e lágrimas de alegria e tristeza por todo aquele tempo separados correram.
“Irmão, é tão bom que você esteja de volta”, sua irmã disse, entre soluços. “Nós não precisamos de dinheiro! Só precisamos de família!”
Minutos depois, ele viu sua mãe correndo em direção a ele.
Ele gritou e caiu no chão. Ela o enrolou em seus braços e bateu de leve em sua cabeça, embalando-o. Ele finalmente estava livre para ver o rosto de seus sonhos. Ele nunca mais esqueceria.
Fonte: IG
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