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domingo, 8 de maio de 2016

'Filhos do fogo' trabalham em condições arcaicas nas caieiras do RN

Caieira do RN - Fotos: José Bezerra

A boca de pedra parece querer engolir tudo que se aproxima, mas nem seus 800 graus de calor afugentam os foguistas que se revezam na produção. Durante três dias e duas noites ininterruptas, às vezes mais, cerca de dez homens enchem de lenha a garganta da caieira até que ela arrote. Depois saem de perto e descansam.

Os foguistas enfrentam as labaredas pelo menos 140 vezes a cada turno de 12 horas para garantir a produção do óxido de cálcio, a cal, como conhecemos. Movimento repetitivo que não pode parar. Como a estrutura é arcaica, quase medieval, a fuga de calor intensa pode botar toda a produção a perder e o prejuízo para o industrial é imenso. Pior ainda para os trabalhadores que ficarão sem o dinheiro do salário.

Trabalhar na queima da cal é como ir ao inferno. De dia, com o calor do semiárido nordestino, a situação é ainda pior. Principiantes costumam desistir, dizem os mais velhos, mas depois voltam por não conseguirem outro emprego. Trabalhar neste ramo não é questão de se acostumar, mas de sobreviver.

Longe da modernidade crescente na indústria, em pequenas cidades do Nordeste, homens forjados no fogo enfrentam ainda um cenário ultrapassado, seja nas condições de trabalho ou nas relações com aqueles que os empregam.

Sem equipamentos de proteção, os trabalhadores envelhecem cedo. As mãos engrossam logo e a pele ganha uma pigmentação escura. Os pulmões precisam ser fortes, do contrário adquirem uma gripe sem cura. Além do calor intenso, a poeira da cal resseca as narinas e os lábios. O risco de queimaduras graves, de acidente ou de topar com animais peçonhentos preocupa mais os trabalhadores do que a ausência de banheiros, bebedouros ou refeitórios nas instalações.

A remuneração é por dia trabalhado. Entre R$ 60 e R$ 70, dependendo da região. Quase ninguém tem carteira assinada e os que têm também não usufruem de seus direitos, já que continuam recebendo apenas pelos dias que trabalham. Essas irregularidades que beiram o absurdo não são segredo para ninguém, mas eles dizem que não adianta denunciar. Alegam que, além de não resolver nada, os órgãos de fiscalização ainda tiram seus empregos ao fecharem as caieiras.

É assim a vida de muita gente em cidades do interior do Nordeste, onde a forma rudimentar de produção da cal persiste e submete trabalhadores a condições grosseiras de trabalho, risco de acidentes e morte, e salário que nem dá para chegar ao fim do mês.

No Rio Grande do Norte, os municípios de Governador Dix-sept Rosado e Apodi têm, hoje, o maior número de fornos de cal em atividades. Foi lá onde a equipe do REPÓRTER DE RUA conheceu as histórias contadas nesta reportagem. 

Uma região dominada pelas caieira

Tanto na cidade de Governador DixSept Rosado, quanto no distrito de Soledade, em Apodi, as caieiras fazem parte da geografia urbana porque estão no meio das casas. Feitas de pedra calcária não calcinadas , a mesma usada para fazer a cal, a construção circular lembra ruínas dos primeiros castelos medievais. Seus quase oito metros de altura expõem, de cima, um abismo assustador. Quando cheias e em atividade, se tornam verdadeiros vulcões controlados.

Seu Chico de Salú, 74, começou a trabalhar na cal em 1960, aos 18 anos, e pelo que relata sobre a produção, as únicas coisas que mudaram em meio século foram a altura dos fornos e a substituição da tração animal por máquinas. “De resto, tudo continua como antigamente. Até a extração do calcário continua sendo feita com marreta, já que a dinamite foi proibida aqui”.

Ainda que a extração de calcário seja a principal atividade nestas comunidades, muitas famílias ainda moram em ruas sem pavimentação. Uma contradição que mostra a inversão de prioridades nesta cadeia produtiva. As pedreiras de onde se extraem o mármore, a pedra da cal e o paralelepípedo colocam em risco a vida e a saúde de muitas pessoas, mas o que fica na comunidade não é suficiente para transformála ou melhorála.

Em Soledade, por exemplo, a exploração do calcário destruiu grande parte do que é hoje o segundo mais importante sítio arqueológico do Brasil. O Lajedo de Soledade guarda resquícios de animais préhistóricos que viveram na região há mais de 90 milhões de anos, além de indícios dos primeiros homens no continente
americano. Muitas ravinas foram extintas e continuam ameaçadas. 

No Rio Grande do Norte, o trabalho da cal só é clandestino para os órgãos de fiscalização. Tem gente que trabalha no setor há mais de 20 anos e nunca teve a carteira assinada. Mas os empresários também se dizem esquecidos pelos governos e, por isso, seguem sua produção na contramão da lei. Há pelo menos 50 anos tem sido assim, como se a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), criada há 73 anos, ainda não tivesse chegado a essas regiões do Estado.

Reclamando que o governo só atua de forma punitiva, os empresários se unem em associações. Há anos, lutam por atenção dos governos que poderiam ajudar na modernização do parque industrial. Porém, enquanto essa ajuda não chega, o sistema continua como antigamente. (JPR)
Fonte: Novo Jornal

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